quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Os Caracóis ou Das Nostalgias na Noite II




...E ser um caracol,
Existir em mil lugares,
Hastear minha bandeira
Pelos ares...
E deixar-se, assim,
Quase resoluto
É também ocultar-me
Como de qualquer outro...

Ser um caracol,
Estar alheio ao todo,
Aos devaneios que me cortam
A carne, como um alarde.

Canto, pois, esta solidão-morada.
Canto, pois, esta solidão mesquinha,
Fiel dentro de mim
Como uma morte;
Eufórica dentro de mim
Como uma vida;
Triste dentro de mim
Como um baile de poucos convivas.

Esse caracol frequenta-me
Noite e dia,
As horas expurgadas num minuto.
Frequenta-me a vida,
Sua podridão de vida,
Efêmeras palavras
Que navegam sobre meus mundos...
Frequentes discrepâncias
Que me alucinam...
Som qualquer, prazer repentino...
Meu cigarro numa noite fria,
A visão de tudo que me dilui
Em fontes, em restos,
Em cardumes de nadas
Boiando girassóis
E fragmentos de olhares vadios!

Oh, minhas manhãs
Como uma fruta
Apodrecendo na boca!

Oh, minhas manhãs
Como esperanças,
Como tédio,
Como a vasta
Cabeleira do dia,
Como um sol a pino
Sobre os algarismos do nada,
Sobre a fruição dos meus
Pensares mais íntimos.

Oh, plena solidão de mim,
Egoísmos que me infundem
Uma alma tão pequena,
Tão minha, tão ideal...
Idealismos de minhas consciências,
Flores e desabrochares
E medos e fantasmas
E coisas que me dispersam
Em inúteis navalhas.

Esta manhã podre sobre os móveis;
O cupim que corrói meu coração,
Igual a uma madeira gasta,
De infinitas plenitudes...
Desenhando felizes ilusões
Em minhas noites sem vigília.

O que virá, o que me ilude,
Funde-me em cataclismos,
Apocalipses de outros mundos
... Enquanto caracol,
Enquanto fonte,
Enquanto nuvem,
Enquanto terremoto,
Lá, onde agora meus algozes cantam,
Exultantes, vencedores...

Esse tédio que me come por dentro,
Esse tédio que me assassina as horas,
Esse tédio que me cospe para fora
E, diletante, me esbofeteia...
Canto-te, oh, tédio de meus punhais!
Canto-te porque em tédio
Apenas te fazias,
Porque tédio apenas eras,
Fumo qualquer, ilusão despercebida...

Tua carne é minha senha,
O esconderijo onde habito
Em multidões incalculáveis...

Nestas manhãs em que me dissipo,
Sobra de nenhuma fonte,
Desespero de almas despossuídas,
Enxergo apenas tua face,
A lembrança que me esmaga,
Que me mastiga o cérebro,
A consciência de outras eras perdidas.


PS.: Esta obra está sendo produzida numa máquina de escrever Erika, 1950, e, depois, digitada em um computador.

5 comentários:

  1. Venho acompanhando esta produção que é rica em seu contexto; Sem esquecer dos detalhes;Este o marujo escritor não deixaria por menos " Maquina de escrever Erika 1950"!!! Parabéns por sua dedicação,seu trabalho em favor da arte literária!! Abraços :)

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  2. Valeu, Dony. Um marujo deve estar sempre atento quando o poema vem, seja escrevendo com a caneta ou numa Erika 1950. Vamos juntos fazer um país com mais literatura!

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  3. E eu como humilde fã,venho dizer o quanto achei lindo e perfeito... E eis minha parte preferida: "Oh, minhas manhãs
    Como esperanças,
    Como tédio,
    Como a vasta
    Cabeleira do dia,
    Como um sol a pino
    Sobre os algarismos do nada,
    Sobre a fruição dos meus
    Pensares mais íntimos."

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  4. Sua leitura, Rayane, é sempre uma satisfação para quem, solitário e recluso como eu, não vê na multidão a solução dos meus dilemas mais profundos; de quem, cercado pelo nada, apenas reflete sobre as mesmas coisas, como num eterno retorno ao labirinto do eu.

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    1. Gostei bastante do poema, muito bem escrito e literalmente rico.

      Suas palavras são um tanto quanto belas.

      O trecho que mais gostei foi:

      "Canto, pois, esta solidão-morada.
      Canto, pois, esta solidão mesquinha,
      Fiel dentro de mim
      Como uma morte;
      Eufórica dentro de mim
      Como uma vida;
      Triste dentro de mim
      Como um baile de poucos convivas."

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