sábado, 30 de julho de 2011

O pedreiro da alma




Para a amiga e poetisa Ellen Dias


A vida me joga sobre esta noite
Com seus braços gigantes
E sua garganta metálica;
Me prende todo o corpo,
Sempre aprisionado
Pelo vazio efêmero
Deste nada que se dilui
Dentro do peito dilacerado na estrada
De meus pensamentos, de meus tormentos...
Agora a noite me surpreende
Sempre atenta em desvairados lençóis!

Ó manhã de meus infernos astrais!
Ó minha solidão, como qualquer um!
Estirada sobre meus braços magros,
Longe de meus pensamentos
Como frutas apodrecendo
Nas tardes desta cidade...
Vem, aurora outonal dos que partiram
E deixaram, somente nas lembranças,
Suas manchas mesquinhas e pequenas,
Como outro qualquer,
Como uma folha, uma solidão, uma angústia!
Ó manhã, ó solidão presente nas coisas,
Dentro da alma do homem,
Impregnada em sua voz!
Posta sobre nossa pele
Invadindo a carne, ser apodrecendo
Em estradas longas e disformes...

Venho de outras eras,
Venho de outros destinos,
Mapeados no meu rosto
Como um itinerário envelhecido,
Como uma peregrinação a um lugar perdido
Na memória infame que aniquilamos todos os dias.

Nem sou nem posso assassinar
Aquilo que está impregnado
Nessas horas destituídas e alentadas
Pelo que somente me vem, estas memórias.

Vivo como qualquer outro.
Meu ser está em toda parte.
Nesta noite feroz
Apenas a lembrança de um nada
Que me aparece como uma morte
Me acenando de seu profundo abismo
E me indicando aquele caminho
Nunca percorrido por minhas pernas cansadas
De ser apenas pernas, coisa nenhuma...

Vivo como qualquer outro...
Eterna solidão dos olhos,
Cansado de estar no mesmo lugar,
Fixado sobre a pedra da memória
Como uma colina romana,
De estar entre livros,
Prostrado sobre lençóis,
Com papéis pelo corpo...
A alma à revelia das horas.

Vivo como qualquer outro,
Sempre esperando aquele último acenar
Da morte que me leva diariamente
À casa paternal de meus ancestrais...
Estou farto de mim como um homem maduro;
Estou farto dessa discórdia;
Estou farto de ser-me apenas tédio
E manhã e nada mais senão aquele sinal,
Farol dentro da alma-vida,
Sinalizando a chegada ao porto das ilusões...

A vida me joga sobre esta noite
E eu bóio na retina das esquecidas névoas
De uma manhã qualquer...
Farto de mim, farto de ser-me só...
Estou preso a esta vida como um abscesso,
Como um tumor, uma doença incurável.
Estou preso à vida como uma cola ao papel;
Longe das minhas precipitações...
Estou preso à vida como quem desenha –
Na sombra de seu passado –
Uma fronte perdida...

Estou preso de mim e daqui (dentro)
Jamais me retirarei...
Fincado na alma, pote quebrado
Na fonte do rio-ser...
Meu inferno é saber-me estranho
Num mundo de estranhos e de somente fel.
Meu inferno é saber-me abandonado,
Crucificado como um salvador
Preso ao madeiro, um homem boiando
Sobre o sangue que corria
A pouco das veias, agora vazias...

Sim, meu inferno é estar-me aqui,
Sempre sentado diante da vida,
De cócoras para o nada,
De costas para aquilo que me consome
E que me assemelha a qualquer um,
A qualquer coisa, menos um divino
Cismar daquilo que nunca fui ou serei.
Sim, meu inferno é o de estar-me;
O de encontrar-me no amanhã,
No indesejável momento de dizer
A última palavra à ira de si.


Ilustração: Hausmann - Movimento Dadaísta

3 comentários:

  1. Olhe, esse poema, sei não viu Mario! Que perfeição! Honrada por saber q foi dedicado a minha pessoa. Sempre que releio esse texto me vem um turbilhão de novas interpretações a cabeça!

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  2. Querida amiga Ellen, este poema surgiu como um turbilhão também. Escrevi-o de uma sentada, na minha Remington, um copo de café ao lado e a vontade de dizer algo ao mundo! Grande abraço...

    PS - Ele estava na versão datilografada. Digitei-o hoje à tarde. kkkkk

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  3. Muito profundo, uma reflexão da alma. Mário, como sempre criativo com as palavras.Parabéns!

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